sábado, 23 de abril de 2022

24/04

Eu escuto a mesma música incessantemente pra ver se tiro de dentro o que os anos não foram capazes de tirar. Anos. Eu disse: ANOS. É uma mistura de amor e arrependimento que já não sei separar nem nomear o que é o quê. Eu fecho os olhos e só vem em minha mente um pêssego mordido que não mordi. Eu não mordi o pêssego, vocês entendem?  Eu não mordi o pêssego e esse ato-não-cometido tem me doído as têmporas, os olhos e o coração. Eu passo horas olhando pro nada revivendo um passado que não vivi. O arrependimento de não ter feito, de não ter sido, me dói os ossos. É uma dor estranha, uma dor confusa, uma dor que faz com que eu escute a mesma música inúmeras vezes. E por quê? Me pergunto. Não sei - respondo. A sensação de ver tudo que poderia ter sido seu, ali, na sua frente, é assustadora. É a sensação de que tudo poderia ter sido diferente se você não tivesse a velha mania de evitar sentimentos. Eu tenho essa mania. Eu sei. Ele sabe. Ao ver tudo acontecendo claramente diante dos meus olhos eu me sinto nua, me sinto arrebatada por todo o sentimento que evitei há anos. Eu evitei e neguei e menti pra mim mesma e pra ele (embora ele me conheça como ninguém). Ao ver tudo acontecendo a ânsia dele me vem a tona. Eu não quero que ele seja meu, não quero roubar a vida que ele tem agora pra mim. Mas, inevitavelmente, eu quero ser dele. Eu quero. Eu sou. E dizer isso agora parece tão pequeno e tão libertador. Eu queria voltar atrás e morder o pêssego. Queria deixar esse sentimento desaguar naquela boca que desejo tanto. Queria olhar nos olhos e dizer que agora estou aqui, inteira, dele. Mas é tarde demais. A época do pêssego passou. Em mim, agora, resta um gosto amargo de uma fruta que não provei. Engulo o choro e sigo em frente. A vida tem dessas coisas, digo. E volto a ouvir a música que não me deixa esquecer.