terça-feira, 13 de outubro de 2009

O filme nunca para.

“E enlouquecerás pelo que hás de ver com os teus olhos”
Deuteronômio 28:34

Era só mais um dia comum.
Um dia como outro qualquer em que ela leria livros, encontraria pessoas, conheceria canções e escreveria antes de dormir.
Na monotonia do dia se entorpeceria de Wilde, Sheldon e Dostoiévski enquanto as pessoas, ao seu redor, falariam sem parar.
Inquietar-se-ia.
Pensaria em ir até a cozinha e tomar um gole de café de ontem, chegaria a levantar-se de onde estava, mas então se lembraria do quanto odiava café.
Pensaria na geladeira, vazia, e forçaria sua mente a se lembrar se ainda haveria aquela garrafa de vodca esquecida por lá.
Não lembraria.
Iria até a cozinha a fim de ver com seus próprios olhos.
Abriria a geladeira e encontraria a garrafa vazia, a encostaria em sua boca e sentiria um gosto de algo como "aquilo que já não existe relembrando algo esquecido”.
Pediria: que haja cigarros naquela gaveta.
Não haveria e, então, acrescentaria: ainda tenho meu Rock'n' Roll.
Colocaria um tênis qualquer, prenderia os cabelos com uma fita qualquer enquanto, em seus fones de ouvido, um puta cara gritava sem parar.
Ganharia um cigarro de um andarilho e lhe beijaria a face em agradecimento.
Sorriria para alguns jovens rapazes e pensaria, arduamente, em um.
Sentiria saudades.
Apertaria o pause daquele mpqualquercoisa, como quem diz: há certas horas que nem o velho Rock é a salvação.
Gritaria: o amor é um grande filho da puta; somos grandes filhos da puta, meu bem; grandes, e bons, filhos de uma, puta, puta.
Riria de si.
Olharia, de volta, para as pessoas que a olhariam assustadas.
Sentaria na calçada, já acostumada à sarjeta, pegaria uma bituca de cigarro no chão, a maior delas, e tragaria sem se interessar por seu passado.
Levantaria.
Olharia para os lados e diria - bem alto para que todos a ouvissem: preciso ir.
Acreditaria em sua própria mentira e voltaria para casa.
Voltaria para Dostoiévski, para Wilde, para Sheldon.
Voltaria para mim e para a garrafa vazia - agora quebrada contra a parede.
Jogaria o tênis em qualquer canto da sala.
Ouviria as reclamações de sua mãe sem prestar muita atenção.
Sentiria cheiro de café e lembraria: Odeio tanto!
Iria até a cozinha e encheria uma xícara, inteira, com aquilo.
A mãe diria: tem que adoçar.
Não ouviria.
Não adoçaria.
Amargo...
Concluiria, de súbito: tanto quanto a vida.

4 comentários:

Amanda Galdino disse...

-tão amargo quanto a vida.
é tudo parece seguir em uma rotina desgraçada que faz questão de nos lembrar todo santo dia que a vida é isso. um grande ciclo onde tudo volta a tudo.
nós somos o tudo, nós somos o nada. mas o que importa?
se pudermos esvaziar ou encher a nossa mente com o gosto amargo de algo que sequer gostamos, nesse minuto de lucidez encontraremos nossas respostas.-

=**

Universo Cidade disse...

Pensaria em ir até a cozinha e tomar um gole de café de ontem, chegaria a levantar-se de onde estava, mas então se lembraria do quanto odiava café.
isso acontece desesperos te leva ate ao que n se suporta ...

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Aline A. disse...

ow Arle, tão tocante...